A noite desceu as suas cortinas


A noite desceu as suas cortinas.
Deixou-se estar. Afinal, o dia terminava como todos os que ficaram para trás.
Recordava. As mãos macias no papel amarelo onde se sentiam as texturas do tempo.
Prometera não voltar a abrir. Prometera nem abrir a pequena gaveta que cheira a dias amarrotados. O azul da tinta já pálido, enterrou-se nos sulcos das letras. “Parece braille”, pensou.
Perdera-se a capa. Só eles sabiam (Maria achava que ele ainda sabia) a ternura das palavras escritas num caderno de linhas. Trinta anos. Tempo de vazios e cúmplices instantes de silêncio. Perdera a viagem para o sonho. A ilha para dois enamorados por palavras. Isla Negra ou Lanzarote. O mar, um par de mãos no vento, cabelos de sal. A cumplicidade de quem espera da vida carinho, horas sem fim, noites acesas, papéis, tinta, cartas, música concertada com a dança das ondas. A velha máquina de escrever tem desbotada a fita e a tecla do A encravou há muito. De tanto escrever mar, barco, amor, saudade, viagem…
O que parece não fazer sentido aceita-se como uma roupa que não se usou. Ajeitará o segundo botão da sua camisa enquanto ele apertará o último laço do seu vestido.

Sentem-se memórias. Sépia. Um livro por fechar com um pedaço de renda.
Acendeu uma vela quase ardida.
“E será sempre assim.”

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© Lília Tavares (a publicar)

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